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“Canina” (Nightbitch) – indicação de filme

Filme: Canina – Texto: Gabriela Braun 

Baseado no livro de Rachel Yoder, Canina (ou Nightbitch, no título original) é um filme que nos faz mergulhar no universo da maternidade. Quando assisti o trailer pensei que encontraria uma comédia bizarra com alguns toques de realidade.  No entanto, já nas primeiras cenas do filme fui inundada por uma conexão direta com a protagonista interpretada pela atriz Amy Adams. 

O filme aborda a história de uma mulher casada, que ao se tornar mãe resolve largar sua profissão para se dedicar aos cuidados do filho. Ela e o marido estabelecem um acordo onde ele continuará trabalhando para prover o sustento financeiro da família. O trabalho do marido faz com que ele esteja ausente vários dias da semana, fazendo com praticamente todo cuidado do filho esteja sob responsabilidade da mãe. Qualquer traço de realidade nesse relato é mera coincidência. Será?

Ao longo da narrativa acompanhamos a trágica decepção da protagonista sobre as escolhas que fez ao se tornar mãe. A partir do realismo mágico, o filme nos atravessa com diálogos internos dessa mãe ao se deparar com a invasão de outros desejos para além da maternidade, quando confrontada com a realidade do significado de ser mãe. 

Para satisfazer esses desejos, a protagonista acredita estar se tornando uma cadela, um animal com muitos instintos e com a liberdade de escolher se libertar de todas as amarras sociais que uma mãe enfrenta. Uma interpretação fantástica que, por mais bizarra que seja, nos transporta direto para todos os desejos que uma mulher abandona quando se torna mãe. Acompanhado disso, temos uma relação transgeracional da personagem com a mãe, onde as memórias da sua infância voltam fazendo-a lembrar de que a mãe também enfrentou os perrengues da maternidade. 

Elisabeth Badinter, em seu livro O Conflito – A mulher e a Mãe, escreve, de forma brilhante, que 

“A futura mãe fantasia apenas o amor e a felicidade. Ela ignora a outra face da maternidade feita de esgotamento, de frustração, de solidão, e até mesmo de alienação, com seu cortejo de culpa. Quando lemos os recentes testemunhos de mães, avaliamos o quanto elas estão pouco preparadas para essa conturbação.”

Ignoramos o que vem depois do parto, é fato. Mães e pais não têm a menor ideia do que irão enfrentar após o nascimento do primeiro filho. Por mais livros que sejam lidos, por mais cursos, debates que se participe, a maternidade e a paternidade são atravessamentos brutais que nos tiram de qualquer outro lugar em que já estivemos. 

E o pai? O ator Scoot McNairy interpreta muito bem o papel do pai: espectador, provedor financeiro e realizado com a propagação da espécie. Até ser arrebatado para dentro de um diálogo duro sobre acordos, posições e desejos desse casal.  É aí que o bicho pega, literalmente!

Essa é a beleza da arte, conseguir nos conectar com o “iconectável”. É a arte que nos dá leveza para entender e vivenciar sentimentos tão difíceis que arrebatam uma mulher na maternidade, como o ódio, a raiva, a frustração e, quase ao mesmo tempo, um amor imensurável. Se não fosse a arte, talvez enlouqueceríamos. 

Não à toa, Amy Adams interpreta uma mãe que era artista antes da maternidade e que irá utilizar a arte para se “reencontrar” consigo mesma. É através da arte que ela irá elaborar o luto da vida anterior ao nascimento do filho e o começo dessa nova vida de mãe. É através da arte que ela expressa a verdadeira essência da maternidade, que tantas vezes a sociedade nos nega. 

Ser mãe é mais do que se doar ao outro. Ser mãe é permanecer um ser desejante, de velhos e novos desejos e, sobretudo, se permitir ser cruel às vezes, amorosa e independente. Canina nos mostra, de forma brilhante, os conflitos que a maternidade nos apresenta e como somos capazes de lidar com eles. Um debate que precisa ser encarado por mulheres e homens. 

É preciso muito realismo mágico, certa dose de humor para trazer essa temática tão importante de um jeito leve e capaz de nos fazer pensar sobre ser mãe e mulher em uma sociedade que premia a “beleza” e esconde o “feio.” 

Para saber mais: 

“O conflito – a mulher e a mãe” – Elisabeth Badinter

“Os filhos da mãe” – Márcia Neder

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Gabriela Braun é Psicanalista e mediadora de conflitos na escola. Pós-graduação nas áreas de psicologia infantil, neuropsicologia e infância e adolescência. Pós graduação em andamento em Psicanalise clinica. Escritora.

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