Muitas vezes, pessoas com transtornos de autoimagem e alimentares buscam uma alternativa rápida, eficiente e sem sofrimento para dar conta de um processo que envolve não apenas a percepção física do próprio corpo, mas a representação simbólica e afetiva, nele inscrita e nele construída também através dos hábitos alimentares.
O que vem sendo difundido através das mídias sobre o que, quanto e como cada pessoa deve se alimentar e, ainda, as fontes que imputam às pessoas o sentimento de culpa pela “ineficiência” em construir o corpo “bonito” (para os padrões hoje valorizados) são aspectos que estão na gênese desses transtornos, porque padrões e crenças limitantes se infiltram nos processos psicoemocionais. Claramente percebemos a influência do inconsciente nessa dinâmica de formação da imagem de si. Claro está também que apenas a Nutrição Funcional não dá conta desses processos que envolvem a psique, por isso que a abordagem mais integrativa, que se soma a Psicanálise, pode promover maior andaime para os processos de autoconhecimento e autotransformação se tornarem mais profundos.
Psicanálise e Nutrição são ciências intercambiáveis
Na identificação e tratamento de transtornos alimentares são consideradas as complexas dinâmicas que envolvem a pessoa com a alimentação, o corpo físico (manutenção da saúde, vitalidade, eutrofia/obesidade etc) e autoimagem corporal. A Psicanálise, por ser uma abordagem terapêutica que busca compreender a história individual das pessoas a partir de seus processos em interação com os pares, também tem como foco a compreensão das origens inconscientes dos transtornos alimentares, das questões relacionais, emocionais, traumáticas que podem gerar:
[…] 1) Pica; 2) Transtorno de Ruminação; 3) Transtorno Alimentar Restritivo/Evitativo; 4) Anorexia Nervosa (AN); 5) Bulimia Nervosa (BN) e 6) Transtorno de Compulsão Alimentar (TCA). […] Transtorno Alimentar Especificado e Transtorno Alimentar Não Especificado. (BANDEIRA, 2020, p. 21).
Imaginem uma pessoa que ingere substâncias que não são alimentos por mais de dois meses e é diagnosticada com PICA, como um dos sintomas de outras condições como esquizofrenia, transtorno do espectro autista etc; ou uma pessoa que come até passar mal e sente desgosto por ter agido assim; ou ainda uma pessoa que tem unicofagia, passa horas nas redes sociais assistindo a vídeos com imagens de bocas mastigando e apresenta seletividade alimentar. Algumas pesquisas, a exemplo do estudo realizado por Bandeira (op.cit), mostram que
[…] os efeitos danosos do trauma infantil podem abarcar diversos domínios: prejuízo na regulação afetiva e comportamental; dificuldade no âmbito relacional; baixa autoaceitação; alto nível de dissociação e danos nas estruturas fisiológicas e cognitivas. (BANDEIRA, 2020, p. 18)
Os exemplos mencionados acima são reais, configuram, entre outros sinais e sintomas, perfis atendidos recentemente na perspectiva da nutrição e psicanálise integrativas.
A Nutrição Funcional, por seu turno, traz a orientação sobre alimentos e suplementos ou fitoterápicos que atuam na saúde cerebral, entre outras circunstâncias, mas as terapias holísticas podem dar o suporte para as questões transgeracionais (ex: acupuntura, florais etc) e é a psicanálise que traz a perspectiva da escuta qualitativa, de um autoconhecimento mais profundo e, por assim dizer, a autotransformação, a autocura através da fala e dos demais recursos que podem sustentar o autocuidado.
Alguns pontos de ancoragem no tratamento de transtornos alimentares e de autoimagem
A abordagem integrativa, que propõe a dinâmica transdisciplinar no tratamento de um comer transtornado e da ressonância desse processo na autoimagem é uma abordagem que “[…] visa oferecer uma comunicação entre o sintoma e o aspecto subjetivo do paciente, considerando a escuta da história singular de cada um e sua relação com a comida[…]”, é um descortinar do “vivido e não simbolizado” (JUNQUEIRA et.al.2023, p. 15).
Aqui vale ainda reiterar que um transtorno alimentar e de autoimagem envolve um comportamento que é multifacetado, multidimensional e por isso pede que o tratamento seja multi ou transdisciplinar. E, considera ainda que um comportamento
[…]nunca fala por si, é preciso escutar como ele se articula com os demais, com a história do sujeito, suas fantasias (conscientes e inconscientes) e seu funcionamento psíquico, para então compreendermos a mensagem implicada num sintoma(Id.Ibid, p. 22).
Na visão da Psicanálise, que aqui adjetivamos como integrativa para marcar a dinâmica do trabalho que propomos na clínica, um transtorno alimentar e/ou de imagem contempla aspectos biopsicossociais do adolescente, os quais estão interconectados e desempenham uma função substantiva na formação da identidade e no desenvolvimento das inteligências, especialmente a emocional.
Se, do ponto de vista biológico, essa fase da vida é marcada por intensos processos hormonais e corporais que influenciam o comportamento e a autoimagem; por outro lado a infância e seu imaginário, a fantasia, a força dos processos de interação com os pares (pais, principalmente) vai, inevitavelmente gerar conflitos internos que ressoam no adolescer, na busca pela autonomia e empoderamento, na necessidade de pertencimento, nas expressões de sexualidade, na ocorrência da ansiedade (inclusive a desadaptativa) e inseguranças, nas projeções para a formação acadêmica e mundo do trabalho, entre outros aspectos que geram, mantém ou provocam a quebra de vínculos afetivos e sociais.
A psicanálise reitera que esses fatores interagem de maneira complexa, afetando a sensação de bem estar, o gostar-de-si, as escolhas da vida, nessa fase que é reconhecida como um “acontecimento”, um interroga-se sobre sua identidade. E o recurso do corpo passa a ser uma tentativa de “escapar da impotência, da dificuldade de pensar em si”, uma fase em que “o perigo inerente a alguns comportamentos (entre esses o comer transtornado) parece, ao jovem, algo pouco importante diante do incômodo de viver” (LE BRETON, 2017, p. 127).
A seguir propomos algumas reflexões sobre o eixo Psicanálise-Nutrição, com vistas a sumarizar processos intensos que podem fazer parte das vivências de um adolescente que desenvolve transtorno alimentar e/ou de imagem. Então, vamos pensar juntos a clínica para o adolescente contemporâneo? O nosso foco pode incidir em vários aspectos, entre eles:
1-Exploração do inconsciente
Conteúdos do inconsciente influenciam comportamentos, entre esses os alimentares, como uma “resposta” a conflitos internos não resolvidos, a questões de baixa autoestima, padrões relacionais disfuncionais (muitas vezes advindos da infância) e traumas emocionais.
A psicanálise é um caminho para acesso a tais conteúdos e pode promover a transformação de dinâmicas que sustentam os transtornos alimentares.
A nutrição integrativa, por sua vez, também dispõe de recursos de anamnese, de leitura corporal e qualidade da mente, que ajudam a pessoa a ver o seu processo com mais clareza e a traçar, sem rigidez, alguns caminhos de autocuidado para a manutenção da saúde.
2- Relação com o corpo e a imagem projetada no espelho/a imagem projetada pelos pares
Alguns aspectos nutricionais podem estar presentes em transtornos alimentares, como a desnutrição oculta. Em outras palavras, para exemplificar, podemos mencionar o desequilíbrio de nutrientes como ferro, iodo, vitamina A e a baixa ingestão de proteínas, aspectos que podem provocar dificuldade na percepção de saciedade. Mas, na centralidade de tais transtornos está, na verdade, a relação do sujeito com seu próprio corpo e sua imagem, sua identidade pessoal e social.
Do ponto de vista da Psicanálise, esses transtornos podem ser um sintoma de aspectos emocionais profundos (JUNQUEIRA et.al.2023) como a busca por controle, a necessidade de afeto, a busca constante por validação externa, crenças, padrões internalizados e rígidos de beleza, de perfeição.
3 -A construção do eu (autoimagem) e o narcisismo
A representação idealizada de si mesmo pode sofrer algumas distorções, as quais podem estar na raiz de transtornos de autoimagem (conhecido como transtorno dismórfico corporal) e alimentares (compulsão, anorexia etc).
O narcisismo vivenciado na infância, quando não é vivenciado a contento, ou seja, quando principalmente a mãe não consegue ser “suficientemente boa”, pode gerar falhas na idealização do Eu, na autoestima, gerando insegurança. (ZILMERMAN, 1999).
Essa desorganização da personalidade também gera comportamentos desarmônicos na alimentação porque, culturalmente, a pessoa tenderá a aceitar tudo o que lhe é oferecido, como uma forma de aprovação, de inserção, “sentimento de pertencimento” em um dado grupo, mascarando as suas feridas através do “comer emocional e compulsivo”.
4-A imagem corporal e o complexo de Édipo
A relação com as figuras parentais (pai, mãe e/ou aqueles que exercem esta função) e alguns padrões estabelecidos, inclusive, por eles na infância, podem gerar conflitos internos que perduram até a fase da vida adulta, impactando a forma como as pessoas se veem, percebem o seu corpo físico e se relaciona com ele e com a comida. (NÁSIO, s./d.; ZILMERMAN, 1999; JUNQUEIRA et. All. 2023).
5-Defesas psíquicas
Alguns mecanismos de defesa (ex: projeção, negação) podem estar presentes nos transtornos de imagem e nos transtornos alimentares. Nesse caso, é comum a pessoa apresentar dificuldade em lidar com aspectos dolorosos ou conflituosos de sua trajetória de vida, de sua própria identidade. (ZILMERMAN, 1999). A psicanálise busca explorar tais mecanismos de defesa, os conteúdos inconscientes subjacentes e a nutrição integrativa, por seu turno, considera que o comer emocional está relacionado a esses processos.
6- Trabalho simbólico
Por meio da análise de sonhos, das associações livres, da interpretação de sintomas, a Psicanálise ajuda a pessoa a compreender o que está expresso/manifesto no inconsciente e surge como transtorno alimentar e de autoimagem. Traz, assim, possibilidades de encontrar novos significados para as experiências e novas perspectivas para lidar com uma alimentação mais qualitativa, que atenda às necessidades de saúde, de estilo de vida, de longevidade, uma dinâmica que vai muito além da remissão de sintomas, mas a compreensão mais ampla da pessoa em interação com o mundo, da pessoa em sua totalidade psíquica. (ZILMERMAN, 1999; JUNQUEIRA et.al. 2023)
O intercâmbio Psicanálise-Nutrição é um caminho para o conhecimento de camadas mais profundas da mente, das emoções que certamente podem promover transformação substantiva da relação da pessoa consigo, com seu corpo, com a sua história, alimentação e cultura.
Começar de novo… começar por dentro…
Na perspectiva da psicanálise (ZILMERMAN,1999) e da nutrição integrativa, o processo de autoconhecimento e transformação pessoal passa necessariamente por uma jornada interna. Sob a égide da primeira (Psicanálise), se exploram os conteúdos do inconsciente, os padrões comportamentais repetitivos, as emoções reprimidas. E a nutrição integrativa (PASCHOAL et.al.2018; ARANTES, 2022), por seu turno, intensifica o processo de conhecimento transgeracional, psicoemocional e de saúde física, lançando mão de recursos da medicina de estilo de vida, da nutrição funcional, das medicinas tradicionais (Chinesa e Ayurveda).
Começar de novo…significa que no movimento cíclico da vida sempre é possivel que a pessoa se reconecte consigo, seja um escafandrista de sua própria psique, investigue motivações, desejos, padrões, conflitos que influenciam a ação no mundo exterior e seus hábitos, entre esses, os alimentares. Esse movimento possibilita a construção de uma identidade mais forte, autentica, onde a autocompreensão e a autocompaixão podem promover a integração das diferentes partes, vivências, perspectivas, projeções do ser.
Ao iniciar esse processo de autoexploração, de análise, de conhecimento interno, muito provavelmente vários insights, a luz em alguns aspectos “automáticos da vida”, várias transformações, inclusive uma atenção mais plena ao momento presente, o mindfulness, poderão estar ser contemplados neste movimento de acesso ao mundo interno e compreensão sobre as formas como ele impacta as relações interpessoais, o contato com o mundo externo.
É uma trajetória, por assim dizer, de reconexão com a própria essência, ampliando a compreensão de que é olhando para dentro que encontramos as respostas para nossas questões mais profundas, para a nossa desconexão, é quando podemos soltar a culpa (por exemplo relacionada a construção de um corpo perfeito), de uma mentalidade de dieta (punitiva, restritiva), assim novos caminhos, novos começos podem ser traçados, abraçados, vividos.
Este texto reflete também a leitura de alguns estudos, a saber:
ARANTES, A.M. Dietoterapia Chinesa: Nutrição Para o Corpo, Mente e Espírito. 2ª ed. SP: Atheneu, 2022.
BANDEIRA, V. F. O trauma na infância em mulheres com compulsão alimentar. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2020.
JUNQUEIRA, Camila; CASTANHEIRA, M. Atendimento Psicanalítico da compulsão alimentar. 1 ed. São Paulo: Zagodoni, 2023.
LE BRETON, David. Uma breve história da adolescência. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2017.
NÁSIO, J. D. Édipo – o complexo do qual nenhuma criança escapa. Editora: Zahar.
PASCHOAL, Valéria; CARNAUBAL, R. A.; BAPTISTELLA,A.B. Nutrição clínica funcional: uma visão integrativa do paciente. Instituto VP de Pesquisa. Diagn. Tratamento. 2018.ZILMERMAN, David E. Fundamentos Psicanalíticos: Teoria, técnica e clínica. Porto Alegre: Artmed, 1999.
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Fabiana Tavares é Psicanalista (em formação). Docente. Nutricionista. Acupunturista. Yogaterapeuta. Terapeuta Holística. A transdiciplinaridade e a saúde pelo viés integrativo são trilhas que venho experienciando por mais de duas décadas porque compreendo que cada pessoa é um todo complexo que precisa/ busca viver o(auto)amor, a felicidade genuína e necessita ter sua singularidade acolhida.