Era previsível. No dia em que meu filho completou 18 anos, ele pediu para fazer uma viagem internacional sozinho. O destino? Bolívia. Com uma mochila nas costas, um roteiro solto e o desejo ardente de se jogar no mundo, ele partiu. Voltou depois de perrengues na alimentação, sustos em um trem descarrilhado, ricos aprendizados na língua e na cultura local e uma quantidade enorme de silêncios que nunca serão totalmente traduzidos em palavras. E nem revelados. E foi ali que compreendi, na carne, o que significa sustentar o desejo de um filho sem tentar retê-lo pela angústia de um medo meu e do pai.
Recentemente, o Brasil se comoveu com a tragédia envolvendo a jovem Juliana Martins, de 26 anos, vítima fatal de um acidente durante uma viagem à Indonésia. A imagem dela, mochilando sozinha, fez ecoar um tipo de medo coletivo: o medo de deixar partir, o medo do imprevisível, o medo do mundo. Mas também o medo de não conseguir mais proteger os filhos.
Esse texto não tem a pretensão de julgar escolhas ou de emitir pareceres. Mas talvez ele sirva para abrir um espaço de reflexão: como estamos, enquanto sociedade, lidando com a adolescência e com os ritos de passagem que ela exige para que o sujeito se torne adulto? Em muitas culturas, sair de casa, experimentar o mundo e enfrentar desafios fazem parte dos marcos simbólicos da transição da juventude à maturidade. No entanto, vivemos em uma sociedade que, ao mesmo tempo que estimula a autonomia, mantém os jovens sob vigilância emocional e digital quase permanente. Esse paradoxo gera insegurança tanto nos adolescentes quanto nos adultos que os cercam.
Falo aqui não apenas como psicanalista, mas como mãe que fui de um adolescente . E é impossível, mesmo com a teoria a meu favor , não me ver tomada por emoções ambíguas. Já senti o nó na garganta diante das muitas viagens que ele fez sozinho depois. Já pensei em cancelar uma delas por medo e muita insegurança, já chorei escondida quando me despedi no aeroporto. A psicanálise me sustenta, mas não me blinda. Escrevo também para acolher outros pais que, como eu, oscilam entre a vontade de proteger e a necessidade de permitir. Não me sinto plenamente resolvida com ele sendo hoje um adulto e Mestre em Relações Internacionais ( Olhem no que deu!), talvez ninguém esteja, mas acredito que partilhar essas inquietações seja uma forma de produzir sentido coletivo. Esse ensaio aqui foi num suspiro, mas uso da midiática frase de Isaac Newton “se eu vi mais longe, foi por estar sobre ombros de gigantes” para, através da psicanálise, elaborar de uma forma empática a minha escrita. Vamos lá!
O desejo de sair do país, fazer um intercâmbio, viver uma aventura ou um projeto internacional muitas vezes entra em conflito com a superproteção, revelando uma tensão que se instala entre o desejo de liberdade do jovem e a dificuldade dos pais em sustentar a ausência.
Sigmund Freud (1914), ao pensar os processos de luto e separação, já alertava que o desenvolvimento do sujeito exige a renúncia a certos objetos para que outros possam surgir. Crescer, em termos psíquicos, é elaborar perdas. Melanie Klein (1946) nos ensinou que as angústias primitivas associadas à separação, como o medo da perda do amor ou da destruição do objeto amado, se reatualizam na adolescência, quando a conquista da autonomia exige uma nova forma de lidar com a alteridade. Françoise Dolto (1986), por sua vez, insistia que o adolescente precisa de espaço para experimentar, correr riscos e até se frustrar. Para ela, é no enfrentamento do real que o sujeito pode se subjetivar e encontrar o seu próprio desejo. Impedir esses movimentos em nome de uma proteção absoluta pode estagnar o processo de individuação.
Donald Winnicott (1958) talvez seja o autor que mais nos ajude a compreender a tensão entre dependência e autonomia. Ao formular o conceito de “capacidade para estar só”, ele indica que a solidão só pode ser vivida de maneira criativa quando foi precedida por experiências suficientes de presença confiável. Ou seja, para que um jovem possa se lançar no mundo, seja em um mochilão, em um intercâmbio ou em um projeto internacional como jogar em um grande time de futebol, ele precisa ter internalizado uma base segura. A confiança dos pais não se constrói no dia da partida, mas nos anos anteriores, nas pequenas autorizações, nos limites respeitosos, nas escutas sem julgamento. Quando Winnicott fala em “ambiente suficientemente bom”, ele se refere justamente a esse campo de sustentação simbólica e emocional que, uma vez introjetado, permite ao sujeito arriscar-se com uma sensação de amparo interno.
Contardo Calligaris (2000) afirmava que muitos pais confundem amor com controle, quando o amor verdadeiro é aquele que autoriza a diferença do outro. Em suas crônicas e livros, ele frequentemente abordava o quanto o excesso de zelo pode impedir a formação de sujeitos desejantes. Alexandre Patricio de Almeida (2022) propõe que o desejo adolescente precisa ser escutado com seriedade, mesmo quando inquieta os adultos. Ele aponta que muitos adolescentes, ao sentirem que seus desejos são ridicularizados ou deslegitimados, tendem a se silenciar ou a buscar espaços externos , muitas vezes inseguros , onde possam ser reconhecidos. E Christian Dunker (2017) sustenta que a adolescência é um tempo de passagem simbólica, no qual o jovem escolhe seus modos de pertencimento: ao grupo, à causa, ao nome próprio. Não escutar esse movimento pode produzir rupturas, sintomas ou a adesão a identificações frágeis.
Vivemos numa era em que a parentalidade é atravessada por medos reais: violências, instabilidades, desinformação. E isso nos fragiliza como adultos cuidadores. Ao mesmo tempo, muitos jovens querem sair do país, fazer intercâmbio, jogar futebol no exterior, mochilar sozinhos, testar o mundo e se testar. Em que medida estamos conseguindo reconhecer esses movimentos como parte do amadurecimento psíquico e não apenas como ameaças?
Não há fórmulas. Mas talvez caiba aqui uma pergunta incômoda: estamos preparando os adolescentes para o mundo ou tentando manter o mundo fora do alcance deles? A parentalidade é um ofício silencioso, cheio de dobras. E talvez uma das tarefas mais difíceis seja justamente essa: deixar ir sem deixar de amar. Sustentar a ausência como parte do vínculo.
Não se trata de romantizar os riscos, mas de pensar o quanto o excesso de controle pode asfixiar a autonomia. E o quanto, sem autonomia, não se constrói identidade.
Esse texto é uma tentativa de ensaiar uma conversa. Sobre as dores de quem parte, mas também de quem fica. Sobre o medo de perder e o desejo de viver. Sobre as mães que carregam uma mochilinha emocional escondida, torcendo em silêncio por seus filhos, mesmo quando eles não estão mais ao alcance do toque.
E sobre a esperança de que, em algum lugar do mundo, eles encontrem também a si mesmos.
Referências
ALMEIDA, Alexandre Patricio de. Juventude e desejo: escutas clínicas e inquietações culturais. São Paulo: Telha, 2022.
CALLIGARIS, Contardo. Cartas a um jovem terapeuta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
DOLTO, Françoise. A causa dos adolescentes. São Paulo: Escuta, 1986.
DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2017.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia (1917). In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira).
KLEIN, Melanie. Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Rio de Janeiro: Imago, 1991.WINNICOTT, Donald W. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983. (Texto original: 1958).
Fotos: Pixabay.
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Geiza Maria é Psicanalista e Gestora Cultural com especialização em Psicanálise Contemporânea e Gestão da Cultura. Graduação em Marketing e Turismo, com pós-graduação em Gestão Cultural e Psicanálise Contemporânea. Mestra em Psicanálise Contemporânea e Terapeuta em Dependência Química e Saúde Mental.
7 Comments
Carla Cristina
Reflexões mais do que necessárias para a construção da identidade e autonomia nos tempos atuais.
Marco
Hoje com a globalização e a facilidade de comunicação, para os que não vivenciam, parece ser mais fácil , o medo de deixar ir, as incertezas de suas escolhas nos deixam com a mesma insegurança.. mas sem dúvida o deixar é a certeza da evolução como ser humano, as vivências e perrengues elevam eles a um outro patamar.
Monica Moraes
Este artigo me provocou a profundas reflexões quanto aos meus sentimentos e condutas com relação aos meus filhos, em especial neste momento em que os dois, um de 25 e outro de 20 anos,completos hoje, estão em sua primeira viagem à Europa sozinhos.
Me esforcei muito para não os enquadrar no meu desejo de controle absoluto e organização, associados a experiência de inúmeras viagens internacionais, com sucessos e insucessos.
Desde o início do planejamento desta viagem, quando os escutava fazendo o roteiro, com deslocamentos de carro, trem voos, hospedagem e etc…sabendo de tudo que podia dar errado, me esforcei ao máximo para ficar calada e os deixar livres para experimentarem esta “construção “, é claro que precisei pontuar algumas questões que poderiam os colocar em grande risco, como bairros perigosos e etc.
Realmente é um grande desafio confiarmos na educação que demos aos nossos filhos e os permitir viver suas próprias experiências, em especial em um mundo que exige atenção e experiência para se preservar de situações e ambientes de risco.
Em suma, excelente! Obrigada, me ajudou a refletir e possivelmente me colocarei em um novo lugar de “curtir” as vivências deles e posteriormente celebras as vitórias e aprender juntos frente às derrotas.
Ricardo Barbeta
Quando li na Bíblia uma instrução sobre os filhos , quando diz :“..ensina ao teu filho o caminho que ele deve seguir e nunca mais se desviará dele”. Teve um significado especial e um sentido importante no meu papel como pai . Eu vi a “minha cria” viver sob todas as condições externas , impostas pelo mundo ,com grande liberdade , sem no entanto nunca se desviar do”caminho” elaborado pela forma de criar . Sua reflexão é demonstração de conhecimento e te torna parte daqueles que estão prontos para ajustar os caminhos dos que se desviaram da harmonia paz e segurança , quando na família não foram orientados e, portanto, não souberam por onde seguir “, ao ponto de se transformarem em serem agônicos . Parabéns Geiza por abraçar uma causa nobre com tanta competência .
Meire
Lindo texto, Geiza! Eu me senti representada em meus sentimentos como mãe e esperançosa como psicanalista. Entre o desfazer e o arrumar dos nossos mochilões, há itens que serão sempre levados…fico com a base de confiança que você lindamente nos lembrou. Obrigada e Um beijo
Lili Mayon
Que belo texto, Geiza. Não tenho filhos; mas acho que, tendo vivenciado experiências de “deixar partir”, consigo compreender bem esse sentimento tão complexo. Parabéns!
Fatima borja
Excelente texto. Escuto as dores de muitas mães que ficam divididas entre o deixar ir e o medo do que o mundo lá fora pode fazer sofrer seus filhos tão cuidados e amados. Mas outros perigos também estão tão perto dos jovens que ficam em seus quartos e muitas vezes com suas mães tranquilas por acharem que estão seguras. Difícil decidir. Sempre estarão presentes a insegurança e a superproteção. Parabéns Geiza texto muito apropriado para tempos difíceis.