O filme “O guia da família perfeita” foi dirigido pelo cineasta Ricardo Trogi e aborda o dia a dia de uma família canadense e como ela lida com as pressões e as altas expectativas para ser perfeita. Quando assisti ao filme pela primeira vez, logo me chamou atenção a relação que o pai, um dos protagonistas da história, estabeleceu com a filha adolescente. É partindo desse recorte que escrevo estas linhas.
Em tempos de redes sociais, filtros e inteligência artificial, cada vez mais nos questionamos sobre o que é real e o que não é. São tantos perfis trazendo informações sobre quais as melhores estratégias para se educar um filho que é comum você encontrar uma mãe perdida entre o certo e o errado, entre o fazer e não fazer, entre intervir ou deixar passar. Somos bombardeados por histórias de sucesso que vendem uma ideia de que tudo é muito fácil e que, ao nos compararmos com a nossa própria vida, nos fazem acreditar que jamais daremos conta da árdua tarefa de criar um filho. E, no fim das contas, o filho vira um monte de “fazeres” nos distanciando cada vez mais do sentir. O fazer está roubando o ser, definiu muito bem a psicanalista Carina Camacho em sua participação no 8°episódio do “SePáPod?!”. Segundo a psicanalista, estamos criando filhos por comandos, com cada vez menos diálogos, menos reflexões e mais comandos automáticos. Como no filme, quando o pai de Rose, ao deixá-la na escola, sempre se despede com a mesma pergunta: ‘Quem é minha campeã?
No filme, a filha adolescente Rose vive com o pai, a madrasta e o irmão de 5 anos. Rose é pressionada pelo pai a apresentar altos desempenhos em tudo que se envolve. O pai acompanha de perto as notas da filha pelo aplicativo da escola. A cada nota boa, Rose recebe uma premiação. Ele se relaciona com a filha através de diálogos curtos e sempre em busca de resultados. A adolescente passa a entender que seu valor está atrelado ao resultado ou a nota que atinge. Essa é uma realidade que transpõe as telas e invade o dia à dia das famílias que atendo. Não é raro ouvir dos adolescentes frases como “se as notas estiverem boas, está tudo bem”; “eles só se interessam se eu vou bem na escola, não sabem nada sobre mim”; “parece que só valho alguma coisa quando tiro nota boa”; “nunca é o suficiente, sempre tem alguém melhor que eu”; “eles não perguntam se eu tô bem, só querem saber por que a nota foi baixa”.
Então, os pais estão errados? Deveriam se preocupar menos? Cobrar menos? A resposta pra essas e tantas outras perguntas é um belo NÃO SEI! Não consigo imaginar mães e pais que não se preocupem com os filhos: com quem eles se tornarão quando adultos, com o que farão de suas vidas. A preocupação é inerente à parentalidade, assim como a culpa. Mas isso não deveria nos impedir de conversar e escutar os adolescentes, de tentar compreender o que eles estão sentindo e o que gostariam de fazer. E também de falar como nos sentimos nesse lugar de cuidadores e educadores, dos medos que temos e das dúvidas que enfrentamos.
O problema, muitas vezes, é que acreditamos que para ser mãe e pai a gente tem que saber tudo, dar conta de tudo, programar tudo. Quando na verdade, a parentalidade é um eterno não saber. Tudo aquilo que não controlamos e desconhecemos assusta e dá medo. Isso nos faz sentir raiva, agir com violência e impor limites a partir desse lugar. Nos tornamos campeões em colocar limites, mas ainda não conseguimos encontrar o caminho para sustentar esses mesmos limites e muito menos entender que um limite pode e deve ser revisto quando não funciona. Frases como: “um dia pode, outro não pode, como vou saber qual é a regra?”; “eles mudam de ideia toda hora, como vou saber qual é o combinado?”; “Eles dizem uma coisa e depois fazem outra”; “Eles falam de limite, mas depois tem medo de dizer não” – são comuns de se escutar na clínica psicanalítica do adolescente. Existe uma dificuldade real por parte dos pais em sustentar um limite. E existe um grito silencioso dos adolescentes pedindo pelo limite construído de forma respeitosa e amorosa.
Quando o limite não é construído, mas imposto, haverá transgressão. O filme nos mostra isso quando Rose foge à noite para ir em uma festa da escola que o pai havia proibido de ir. Quando não há diálogos a base que forma o limite é a raiva e a frustração. Limites não podem ser desprovidos de afeto, de amor, de carinho. São essas coisas que irão formar a base para sustentá-lo.
Gosto muito da forma como o psicólogo e mediador de conflitos Marshall Rosemberg define a raiva no seu livro – O surpreendente propósito da raiva – não ficamos com raiva simplesmente por causa de algo que alguém tenha feito. Alguma coisa dentro de nós reage àquilo que os outros fizeram – essa é a verdadeira causa da raiva. A raiva é apenas a “casca” do sentimento. Precisamos chegar à semente da fruta para entender o sentimento que está por trás dessa raiva. Geralmente, encontramos o medo, a insegurança e/ou a tristeza. A partir disso, temos condições de compreender por que aquele limite é importante para nós e estabelecer um diálogo mais franco e conectado com as necessidades de toda família.
Em uma sociedade onde o que conta são as vitórias, o que fazer com as derrotas? Onde o resultado vale mais do que o processo de elaboração, o que fazer com a alegria de ter aprendido algo mas ter tirado uma nota ruim na prova? Nós treinamos para sermos vencedores e com isso, perdemos a glória da derrota. Como a letra da música “Vencedor”, do Los Hermanos:
“Olha lá quem vem do lado oposto
Vem sem gosto de viver
Olha lá que os bravos são escravos
Sãos e salvos de sofrer
Olha lá quem acha que perder é ser
Menor na vida
Olha lá quem sempre quer vitória
E perde a glória de chorar
Eu que já não quero mais
Ser um vencedor
Levo a vida devagar
Pra não faltar amor”
Uma família é um time. Cada membro tem uma posição, cada um ocupa um lugar. É preciso que todos estejam jogando no mesmo time para que cada um possa crescer e desenvolver todo seu potencial. Para que isso aconteça é preciso diálogo, escuta e acolhimento de todos. É preciso empatia, mas também compaixão. E, sobretudo, é preciso espaço para as derrotas. Porque, se tivermos sorte, vamos viver muito para presenciar muitas perdas. E se tivermos um time, podemos nos acolher nas derrotas e planejar juntos as vitórias. Não todas, só aquelas que fazem sentido. É fácil? Longe disso! Mas é uma experiência incrível de viver.
Referências:
Filme: O Guia da família perfeita
Podcast: SePáPod?! O podcast do Neppa.
Livros:
O surpreendente propósito da raiva – Marshall Rosemberg
Como criar filhos compassivamente – Marshall Rosemberg
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Gabi Braun é psicanalista e mediadora de conflitos na escola. Pós-graduação nas áreas de psicologia infantil, neuropsicologia e infância e adolescência. Pós graduação em andamento em Psicanalise clinica. Escritora.