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Dar nome ao bullying

Vivemos em uma cultura que empresta palavras, rouba termos, cria neologismos. Às vezes, o empréstimo é apenas moda, às vezes, uma necessidade. Mas há casos em que a ausência de um termo próprio revela algo mais profundo: uma impossibilidade de simbolizar, de dar contorno psíquico a uma experiência dolorosa. Talvez o bullying seja um dos exemplos mais escancarados. Será que temos como enfrentar algo que não conseguimos nominar?

Por que bullying? Por que não temos um adjetivo ou substantivo em português que consiga abarcar, com precisão, essa violência silenciosa e persistente. “Intimidação”, “perseguição”, “zombaria” — tudo isso existe, mas nenhum desses termos dá conta do fenômeno tal como o vivemos e nomeamos hoje. O bullying não é só bater ou xingar: é criar um ambiente tóxico, envenenar a convivência, minar subjetividades. É uma violência que se infiltra, se repete, se naturaliza. Ao não termos uma palavra nossa, própria, ficamos como se houvesse um buraco na linguagem, um vazio sem moldura. 

Como elaboração cultural social, inserimos o bullying em contextos da criança e do adolescente, e falhamos miseravelmente com a paupérrima forma discursiva. Bullying como transtorno do social educacional, como se ele fosse perpetuado apenas nas escolas. Há bullying na vida adulta, no trabalho, na família. Extrapola o formato físico, pois o mundo digital cria novas formas de assédio e violências subjetivas a partir de qual ponto? O da criação de novos termos, geralmente em inglês também: cyberbulling, doxing, revenge porn, flaming, trolling, gaslighting. E a lista vai se reinventando a cada novo produto da indústria do sofrimento.

Na psicanálise, nomear é já um passo fundamental para elaborar. Freud nos ensinou que aquilo que não é simbolizado retorna no corpo, no ato, no sintoma. Sem palavra, não há pensamento possível; sem pensamento, não há enfrentamento. A violência sem nome se transforma em um fantasma que assombra silenciosamente. O sujeito que sofre bullying carrega, muitas vezes, uma vergonha confusa, uma dor que não encontra frase, que se mistura com culpa e autoacusações. Quando não se pode falar, não se pode denunciar. Quando não se pode denunciar, não se pode transformar.

Na comunicação, a escolha das palavras é um ato político. Palavras são tijolos com que construímos pontes ou muros. Ao importarmos “bullying”, deixamos entrever um incômodo: é como se a nossa língua se declarasse impotente diante do fenômeno. E, no entanto, ao mesmo tempo que importamos, não integramos totalmente. O termo circula, mas flutua como uma bolha: estrangeira, fria, técnica. “Ele sofre bullying” soa quase científico, distante — diferente de “ele é humilhado”, “ele é destruído”, “ele é massacrado”. Ao não criar um termo próprio, não sentimos o corte da palavra na carne social.

Como acredito muito na interlocução da psicanálise com a linguagem, é importante trazer a perspectiva de Lacan para este conteúdo. Ele dizia que o inconsciente está estruturado como uma linguagem. Somos falados pelas palavras, muito mais do que falamos. Assim, se a palavra não existe, o sujeito fica órfão de sentido. A violência escolar, a agressividade cotidiana entre colegas, a exclusão perversa nas redes sociais — tudo isso se torna quase invisível se não houver um nome que capture a experiência de quem sofre. E não se trata apenas de designar, mas de transformar em discurso, de abrir espaço para a escuta. Nomear é uma forma de convocar o outro a ouvir.

Mas é em Sándor Ferenczi que encontro uma melhor organização de ideias para falar desta “confusão de línguas”: ao trazer um texto basilar sobre o assunto, ele nos ajuda a compreender ainda mais essa dinâmica. Em seu texto, Ferenczi descreve como, na experiência traumática, há uma mistura violenta entre a linguagem infantil do afeto e a linguagem adulta da paixão ou da violência. O adulto fala uma língua que a criança não entende; a criança responde com outra língua, que não é ouvida. O resultado é uma confusão devastadora, um silêncio forçado. Algo semelhante acontece quando usamos termos estrangeiros para falar de uma violência tão íntima: falamos uma língua que não é exatamente nossa, e, por isso, não conseguimos ser ouvidos nem nos ouvir. Não há elaboração possível onde há confusão de línguas. A dialética aqui parece metáfora, mas é contundente no direcionamento das dificuldades de linguagem e comunicação.

A língua portuguesa, tão rica em metáforas e recursos, ainda não criou um adjetivo que traduza esse fenômeno. Talvez seja um sintoma coletivo: não queremos ver, não queremos falar, não queremos enfrentar. O silêncio cúmplice que acompanha o bullying é fortalecido por essa falta de palavra. Ao não nomear, mantemos a violência escondida atrás de muros invisíveis. E, enquanto isso, vidas são quebradas, identidades são moldadas pelo trauma.

Dar nome ao bullying, então, não é só um exercício linguístico. É um ato de resistência. É uma tentativa de criar espaço psíquico, de legitimar o sofrimento, de devolver ao sujeito a possibilidade de falar. É abrir uma fresta para a elaboração, para o cuidado, para a reparação. Precisamos nomear para existir. Precisamos nomear para lutar.

O dia em que dermos um nome em português — um nome que corte, que queime, que faça sentir — será talvez o dia em que estaremos verdadeiramente dispostos a encarar a violência que escondemos nos corredores das escolas, nos grupos de WhatsApp, nos olhares desviados e nos risos abafados. Até lá, seguimos repetindo “bullying” como quem repete um feitiço estrangeiro, na esperança de que, por magia, o problema desapareça.

Mas a palavra não deve nos proteger. Ela deve nos ferir — no melhor sentido. A palavra deve sangrar para que a ferida possa cicatrizar. E enquanto não tivermos coragem de inventar ou adotar uma palavra nossa, talvez continuemos a fingir que o problema é menor do que realmente é.

Dar nome ao bullying é, antes de tudo, dar nome ao medo, à vergonha e à violência que nos atravessam. É criar, finalmente, uma palavra que nos faça olhar para dentro — e, quem sabe, começar a mudar.


Referências:

DELBONI, C. As dores da adolescência. Summus, 2024.

FERENCZI, S. Confusão de línguas entre os adultos e a criança: o idioma da ternura e o da paixão. (Texto original de 1933).

FREUD, S. O inconsciente (1915). In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. RJ: Imago, 2010.

LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953). In: LACAN, J. Escritos. RJ: Zahar, 1998.

FANTE, C. PRUDENTE, N.M. Bullying em debate. SP: Paulinas, 2015.

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Sandro Cavallote é Psicanalista, escritor, professor e comunicólogo. Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Adolescência (Neppa/EPC) e da Pós-Graduação Lato Sensu Psicanálise e Adolescência. Pós-graduado em Psicanálise com Adolescentes. Pós-graduado em Semiótica e Análise do Discurso. Pós-graduado em Psicanálise e Análise do Cotidiano (PUC). Ocupa diversos espaços de transmissão e atende em consultório próprio.

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