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A dor dos jovens e o eco das nossas feridas

Ter que escolher a hora certa de falar, a forma correta de agir, a roupa adequada, saber quando querer e quando esperar, reconhecer em quem posso confiar e de quem preciso me resguardar para não me dar mal. Ser adolescente nunca foi uma tarefa fácil para ninguém, e nos dias atuais, tem sido um desafio ainda maior.

A internet invade nossas vidas a todo instante, trazendo falsas notícias, informações fragmentadas e questionamentos de todos os tipos. A insegurança no cotidiano também mudou. Não é mais aquela insegurança de outras gerações, muitas vezes ingênuas. Quem nunca teve medo da kombi com palhaços que pegavam crianças? Ou preocupações mais concretas, como a inflação descontrolada: “Se não formos agora ao mercado, daqui a pouco o preço vai dobrar”. Esses medos, de certa forma, eram legítimos. Os contos sempre tiveram a função de apresentar a realidade de maneira lúdica, enquanto a economia instável afetava diretamente o dia a dia das famílias.

Mas hoje, os medos são outros. São constantes e cada vez mais próximos das nossas crianças e, principalmente, dos adolescentes. Quantas vezes ouvimos relatos de jovens sobre experiências traumáticas—assaltos, arrastões, sequestros, abusos, bullying, atentados em escolas? No passado, muitos desses medos eram conhecidos apenas pelos adultos. Nós, adolescentes de outras épocas, brincávamos na rua, jogávamos bola, andávamos de bicicleta e nos escondíamos em qualquer cantinho para jogar esconde-esconde. Quando crescíamos, voltávamos a esses mesmos lugares para namorar.

O que esperar, então, dessa geração criada à base do medo? Trancafiada entre muros, portões e guaritas, cercada por nossas próprias angústias e incertezas? Monitorada dia e noite por câmeras e invadida pelas telas dentro de seus próprios lares? São jovens que sabem muito mais do que nós sabíamos, dominam tecnologias, se conectam com o mundo, falam várias línguas (ou usam o tradutor para isso), conhecem diferentes culturas, músicas, histórias; mas vivem pouco. Sentem pouco. Experimentam pouco.

E ainda há um detalhe importante: esses jovens passaram por uma pandemia. Sim, nós também vivemos momentos difíceis — ditadura, a crise da AIDS, até o medo do fim do mundo na virada do milênio. Mas nada disso se compara ao que essa geração enfrentou. Crianças e adolescentes foram abruptamente retirados de suas escolas, isolados dentro de casa, sem contato com amigos, sem parques, sem brincadeiras ao ar livre. Restaram apenas as telas e o medo: medo de perder a família, de perder a própria vida. Muito cedo, tiveram que aprender a lidar com a solidão, a finitude e a dor da perda.

Definitivamente, não podemos esperar que esses adolescentes tenham os mesmos comportamentos que tivemos. Acredito que podemos afirmar  com toda certeza que o mundo mudou, e, sejamos sinceros, somos nós os intrusos aqui. Apesar de termos construído esse mundo para eles. Então, por que ainda insistimos em dizer que eles estão perdidos, sem futuro, fadados ao fracasso? Se fomos nós, na  nossa vez, que fizemos o mundo do jeito que é hoje.

Talvez seja difícil aceitar essa realidade. Encarar nossos próprios erros, reconhecer as feridas abertas, os sonhos que ficaram para trás, as lágrimas que não choramos para não demonstrar fraqueza. 

O quanto de nós mesmos foi reprimido para caber em expectativas rígidas? Homens que foram ensinados a não chorar. Mulheres que precisavam ser duas vezes melhores para serem reconhecidas. E, a que preço?

Talvez devêssemos ouvir mais esses jovens. Tentar compreender o que dizem através de suas diversas formas de expressão. Em vez de agirmos como aquela personagem da Praça — uma senhora que, sentada em seu banco, surda pelo peso de seus traumas, preconceitos e tristezas, só entendia  de forma distorcida tudo que lhe era dito — devemos nos perguntar: quantas vezes enxergamos nossos adolescentes dessa forma? Quantas vezes interpretamos seus gestos e falas como ameaçadores ou sem sentido?  quando na verdade eram cheios de beleza, interesse e afeto. Será que o problema não está na nossa escuta?

Talvez seja o momento de um convite, e se olhássemos para nós mesmos. Para dentro. Deixar vir à tona o adolescente que ainda vive em nós, aquele que se manifesta na raiva, no grito, na frustração de não ter sido quem sonhava ser. E se nos permitirmos, revisitar nossas dores — não só as do presente, como boletos a pagar ou problemas conjugais — mas aquelas antigas, que nos marcaram desde a juventude. Talvez então entendêssemos melhor essa nova geração.

Somente após esse reencontro conosco poderíamos realmente fazer algo por nós mesmos, nos tornarmos protagonistas da nossa própria história. E enfim, talvez, conseguiríamos respeitar, compreender e apoiar nossos adolescentes, sem esperar que eles resolvam as dores que são nossas e que  ainda arrastamos com grandes bolas de ferro presas aos nossos pés. Dando  a eles a oportunidade de serem o que desejam ser, o que podem ser  e a nós de construir ao a mais do que nos permitiram no passado. 

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Referencial Teórico: 

Contardo Calligari Obra: Hello Brasil (2007), Cartas a um Jovem Terapeuta (2004)

Christopher Bollas Obra: O Sombra do Objeto (1987)

Melanie Klein Obra: Inveja e Gratidão (1957)

Sigmund Freud Obra: O Mal-Estar na Civilização (1930)

série: This Is Us (NBC)

Músicas: 

“Father and Son” – Cat Stevens (1970) 

Cat Stevens – Father And Son Legendado Tradução (Feliz dia dos Pais)

“Pais e Filhos” – Legião Urbana (1989)

“O Mundo é um Moinho” – Cartola (1976)

Cazuza em Estúdio – Gravação de O Mundo é um Moinho
Ilustrações: Eduardo Scheneider

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Cláudia Scheneider é graduanda em psicologia na UniVR. Psicanalista pela EPC. Mãe, atriz, empresária e membro de obras sociais com crianças e adolescentes e do Neppa/EPC.

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