Imagine-se assistindo a um filme ou a uma série da Netflix e identificando parte de seus sentimentos, experiências e dores com a dos seus personagens e heróis favoritos.
Agora imagine o contrário. Você passando horas maratonando uma série ou assistindo a um filme e não conseguindo se identificar na história e nas superações de dores vivenciadas pelos seus personagens favoritos.
Até que ponto a identificação com o sofrimento de personagens impactaria na estruturação e na organização psíquica de adolescentes? Em particular porque adolescentes encontram-se numa busca contínua por uma nova identidade social.
Foi neste sentido que pesquisadores das Universidade de Calgary (Canadá) e da Universidade de Bath (Reino Unido)1 decidiram investigar o padrão de “dores vivenciadas por personagens adolescentes” em séries e filmes transmitidas pela Netflix. E ainda avaliar como estas dores impactavam na estrutura psíquica dos adolescentes entre 12 e 18 anos.
Segundo os pesquisadores, adolescentes que assistem filmes como “Homem aranha – de volta para casa” ou séries como “Stranger things”, “Educação Sexual” e “Enola Homes” encontram-se expostos a, pelo menos, 10 eventos de dor por hora assistida, vivenciados pelos personagens/heróis. A preocupação central do estudo está na forma enganosa como a “dor” é repassada aos adolescentes que, inevitavelmente, buscam identificação com os personagens fictícios de mesma idade. Assim, adolescentes vivendo em diferentes culturas captariam de forma distorcida o real sentido da dor e até confrontariam as dores experienciadas por eles em seu cotidiano.
Como foi conduzido este estudo? Os pesquisadores avaliaram 10 filmes populares divulgados na América no Norte no ano de 2015, cujos protagonistas eram adolescentes e identificaram que: (i) as dores causadas por violência física e lesão corporal eram o tipo de dor mais evidente (75% dos casos); (ii) adolescentes do sexo masculino eram mais susceptíveis a dor (77%) e eram mais retratados como figuras heroicas; (iii) adolescentes do sexo feminino eram retratadas como mais emotivas ao processo de dor; (iv) adolescentes brancos assumiam a posição de sofrimento com mais frequência que adolescentes de outras origens raciais (78%).
Desafios sobre empatia e representação da dor adolescente em mídias.
No estudo, a dor vivenciada no cotidiano dos personagens tinha origem, principalmente, em dores por quedas, por lesões, por escoriações, por dores de cabeça e dores musculares. No estudo identificou-se também a empatia à dor alheia, ou seja, como outros personagens se portavam perante as dores vivenciadas pelos personagens adolescentes- 24% manifestavam a dor alheia de forma crítica e 10% com humor. Segundo os autores do estudo, esta falta de empatia frente às dores dos personagens pode ser refletida na vida real dos adolescentes. De forma geral, quando adolescentes visualizam cenas de gentileza e de acolhimento nas mídias, há a elaboração e a reprodução desta gentileza em seu comportamento social. E, infelizmente, atos violentos e dolorosos tornam adolescentes (e adultos) menos preocupados com a dor alheia. Filmes e séries deveriam expor, de forma mais realista, o cenário das dores de adolescentes reais para que possam se identificar na essência deste sofrimento. Além disso, deveriam dar representatividade à dor de forma igualitária entre as diferentes raças e culturas, para não existir a ideia de marginalização entre aqueles que sofrem e aqueles que assistem o sofrimento alheio.
É fundamental darmos visibilidade aos processos de dor na base da formação humana, pois ela é um elemento real, inevitável e ordenador da estrutura psíquica. As mídias sociais exercem um papel crucial na estrutura de formação de adolescentes. Pelas ondas das mídias sociais, “uma faca pode ser usada tanto para preparar um alimento quanto para ceifar uma vida” – tudo dependerá do contexto da história, do propósito e da estrutura psíquica do personagem que a manipula. Neste viés, outro estudo divulgado por pesquisadores da Carolina do Norte (EUA)2, reforça esta ideia “da faca e de suas aplicações”, apontando para o aumento da ideação suicida em adolescentes após assistirem à série “Dahmer: um canibal americano”, de 2022 (Netflix).
Por isso, não se trata de impedir o acesso dos adolescentes às mídias. Mas é importante se manter atento para qualificar o lugar do sujeito adolescente frente às mídias (filmes, séries, youtube etc) por se tratar de um potencial mecanismo indutor de adoecimento mental coletivo.
Quer saber mais sobre o assunto? Acesse os trabalhos originais citados nesta reportagem por meio dos links a seguir:
Fonte das figuras: https://br.freepik.com/
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Andre Talvani é professor titular pela Universidade Federal de Ouro Preto e encontra-se psicanalista com formação pela Escola de Psicanalise de Curitiba (EPC). Atua em projetos sociais junto à Confraria Psicanalisando no Divã e ao projeto Escuta Cuidadora. É membro do Nucleo de Estudos e Pesquisa em Psicanálise e Adolescência- NEPPA e do grupo de pesquisa e adolescência da EPC.
1 Comment
Leylha
Parabéns à equipe por trazer tão importante e urgente tema à tona e ainda com embasamento científico.
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